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BITTE LEBN. POR FAVOR, VIVE.
ANA LUĂSA RODRIGUES
2015. O céu barrava-se de azul. A luz era cristalina, mas às 9 horas da manhã o sol ainda não tinha tido tempo de aquecer o ar. A meteorologia antecipava 22 graus, coisa rara para a cidade de Berlim, num último Domingo de Setembro. Previa-se um dia perfeito.
Apanhei o metro na estação U6 de Friedrichstraße em direcção a Schlesische Straße nº8. Era este o endereço. Troquei de linha para a U12 em Hallesches Tor. Em 20 minutos chegava a Schlesisches Tor, já em Kreuzberg. O percurso foi tranquilo, a carruagem vinha praticamente vazia. Saí da estação e logo me enganei. Segui na direcção contrária ao que era suposto e só me apercebi porque o Bonjour Tristesse nunca mais aparecia no meu ângulo de visão, sabendo que se situava apenas a cerca de 100 metros.
Continuei vagueando pelo bairro, tentando corrigir a trajectória, na ânsia de o encontrar. O silêncio reinava. Os carros ainda não passavam. Cruzei-me apenas com meia dúzia de jovens que circulavam em contramão, caldados e ensonados, num evidente regresso de uma longa noitada. Um cheiro intenso tresandava o ar, num rasto que se prolongara da noite anterior, dos vários bares que preenchiam os pisos térreos dos edifícios daquelas ruas. As paredes encontravam-se todas pichadas. Os grafittis forravam-nas na sua totalidade. A rebeldia e a revolta foi desenhada com toda a convicção, em todas as superfícies ao alcance da mão. Ali era outra Berlim. Nada tinha de Friedrichstraße.
Começava a ficar impaciente, com a sensação de que estaria definitivamente perdida, quando reparei num pequeno edifício que se desalinhava da rua, encaixando-se numa zona densamente arborizada. Parei. Percebi que abria um acesso público que nos encaminhava a um pequeno parque infantil devidamente equipado, que recheava o interior do quarteirão. Decidi desviar-me e circundei-o. Olhei com mais atenção e reparei, impressionada, como se camuflava com grafittis, ofuscando determinantemente a leitura do edifício, as suas formas... Mas havia algo naquela construção que me chamava a atenção... talvez a escala; o diálogo, o encontro dos volumes; o desacerto de planos; o modo como as suas intercepções e torções desenhavam consolas, palas, terraços, espaços intersticiais... não sabia explicar muito bem, mas aquilo era-me familiar... Foi quando me apercebi, para meu espanto, que estava perante a obra de Álvaro Siza.
Foi um choque, não estava à espera de a encontrar naquele estado, pois não era aquela a imagem que levava em mente. Já não era branca, afinal. Curiosamente, sentia-me também feliz porque, ultrapassado o “ruído” que aquelas pinturas provocavam, e que simplesmente realçavam um deprimente estado de degradação e desprezo, aquela arquitectura sobressaía. Convenci-me, naquele momento, de que a boa arquitectura permanece intacta para além da epiderme. A boa arquitectura é consistente e intemporal.
Retomei a trajectória, certa de que já tinha chegado ao meu destino, e lá vi o edifício a surgir de mansinho, alinhado, arredondando-se, curvando-se, erguendo-se no gaveto, e virando o ângulo que desenha a rua perpendicular. Procurei o pilar que se queria elevar do chão. Mas, para minha desilusão, não o consegui ver porque uma prótese forrava-o. O pilar encontrava-se agora camuflado com efeitos decorativos do restaurante Que Pasa no espaço comercial ao nível da rua. Fotografei-o, para me rir mais tarde, e continuei até ao extremo oposto onde um portão (colocado de um modo desastroso) impedia o acesso às traseiras. Todo o edifício, ao nível do olhar, encontrava-se agredido, sem dúvida, e isto perturbava-me.
Entretanto, afastei-me para o lado oposto da rua porque o queria ver ao longe, gravá-lo na minha memória, substituindo todas as imagens que vira antes de ali chegar. Pareceu-me imponente, apesar de se encaixar de um modo subtil, perfeito. Foi quando olhei para o topo do edifício, à procura do Bonjour Tristesse e encontrei um “BITTE LEBN”, um grafitti escrito a vermelho, com letras garrafais, invertendo a letra “E” numa óbvia analogia à inversão do “S” da expressão cravada na fachada, que hoje lhe dá o nome. Estranhei e não percebi o que queria dizer, porque não sei alemão, mas fiquei curiosa.
Ao regressar, apressei-me a tentar traduzir o que aquilo queria dizer. “Por favor, vive”, foi o que me disseram que estava ali escrito. Tratava-se de um grito de revolta, ou até de desespero. Revi-me nesta tristeza de o ver desfazer-se, destruir-se, apodrecer, morrer... “Por favor, vive” foi o meu desejo, quando o deixei para trás. E é tudo o que agora me apetece gritar, na esperança de que se salve. POR FAVOR, VIVE.
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NOTA 1. O que aqui se registou trata-se de um fragmento de uma viagem, um fragmento de um diário pessoal de uma “viajante” à procura de arquitectura, um registo de um encontro e um alerta para o estado actual do Bonjour Tristesse. Talvez seja um registo inesperado e improvável na série de textos que a Artecapital nos tem proporcionado, uma abordagem menos comum, por não se tratar de um ensaio, ou de uma reflexão académica. No entanto, com esta impressão, procurou-se salientar o poder que a arquitectura tem em suplantar o “desastre”, em ir além da epiderme. Acima de tudo, procura ser um grito de alerta para a circunstância da nossa contemporaneidade, onde muita da Arquitectura dos nossos Mestres — aquela que tem sustentado a Teoria e a História, ou as histórias, no ensino da Arquitectura das nossas Escolas — se encontra em mau estado de conservação, quiçá em vias de extinção. O seu testemunho poderá desaparecer se nada se fizer, como já vem acontecendo. Compete-nos ter esta consciência.
NOTA 2. Bonjour Tristesse é um projecto de habitação social projectado por Álvaro Siza em Kreuzberg (Berlim, 1984). Foi o primeiro projecto de Siza construído fora de Portugal. Foi desenhado a propósito da Exposição Internacional de Construção de Berlim (IBA), onde participaram vários arquitectos, entre os quais Peter Eisenman, Aldo Rossi ou James Stirling. Trata-se de um edifício de uso misto, que incorpora funções comerciais no piso térreo e residências nos seis pisos superiores, com 46 unidades habitacionais, entre duas caixas de escadas.
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Ana Luísa Rodrigues
Licenciou-se em Arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em 1994, obtendo o grau de Mestre em 2000 na mesma Universidade. É Professora Auxiliar na Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, onde obteve o grau de Doutor em 2009, e onde lecciona desde 1999. Em 1994 iniciou a prática profissional, integrando entre 1996 e 2004 a sociedade João Figueira e Associados, Arquitectura e Planeamento Lda., com vista à elaboração do Plano e Projecto de Execução da Nova Aldeia da Luz. Actualmente, é investigadora do Centro de Investigação Lab2.PT.
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NOTA DO EDITOR
Com a publicação deste texto encerro um ciclo na edição da secção de arquitectura da Artecapital — um percurso que teve início em Maio de 2008 com um artigo a propósito da possível demolição do Robin Hood Gardens. Ao longo destes sete anos, no conjunto dos 50 artigos publicados na secção de arquitectura, foram vários os autores que colaboraram com a Artecapital — autores de diferentes gerações, geografias e filiações que escreveram sobre os mais variados assuntos: da crítica à arquitectura, das exposições às conferências, das bienais às trienais, dos manifestos às entrevistas. A todos, o meu agradecimento.
Porto, Novembro de 2015
Pedro Baía