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PRÁTICAS PÓS-NOSTÁLGICAS / POST-NOSTALGIC KNOWINGS
PATRÍCIA SILVA COELHO
As práticas artísticas contemporâneas têm revelado um papel fulcral para incitar diálogos e ações que visem a requalificação da cidade e da urbanidade. Principalmente quando se trabalha sobre territórios invisíveis ou paisagens em estados profundos de amnésia, a arte é determinante para expandir as potencialidades dos lugares e dos seus contextos. A nostalgia e as memórias do que se perdeu tornam-se, muitas vezes, em forças de inércia que condicionam a construção de novas narrativas urbanas. Os projetos artísticos não têm o poder de resolver a ausência, o abandono ou a fragmentação de espaços e territórios mas têm a capacidade de interagir, questionar e refletir sobre as múltiplas possibilidades que estes constituem.
Com base nestas premissas de que a curadoria e as práticas artísticas podem ter lugar na construção de território, surgiu o curso de cultura e pensamento crítico “Práticas Pós-Nostálgicas / Post-Nostalgic Knowings” orientado pelas tutoras Inês Moreira e Aneta Szylak e comissariado pelos Colectivos Pláka [1]. Entre 28 de Setembro e 4 de Outubro de 2019, debateu-se sobre diferentes práticas artísticas e curadoriais recentes que reinventam e promovem o pensamento colectivo para ressignificar lugares e territórios que perderam caraterísticas identitárias. As múltiplas abordagens expostas foram o ponto de partida para formular uma reflexão crítica sobre a área do Freixo, um fragmento territorial localizado na zona oriental da cidade do Porto.
O local escolhido para receber o curso foi a Central Elevatória da Nova Sintra, uma das maiores infraestruturas de armazenamento de água da cidade e que está ao serviço do Município desde 1932. Este edifício, escolhido criteriosamente, demarca desde logo a vontade de refletir sobre lugares de memória e a necessidade de sobre eles construir novos significados. O programa semanal foi dividido entre conferências, caminhadas e sessões de trabalho em grupo onde os participantes tiveram a oportunidade de conhecer a investigação dos autores Elena Lacruz, Jonas Žukauskas e Solvita Krese; acompanhar o geógrafo Jorge Ricardo Pinto numa visita pelo Freixo; e realizar o workshop “Takeover Infraestrutural do Freixo” desenvolvido com o artista convidado Anton Kats.
O curso abriu com a conferência de Aneta Szylak, que apresentou o trabalho que tem vindo a desenvolver nos últimos anos sobre: “Curadoria do contexto - como os estaleiros de Gdańsk se tornaram em algo mais a conhecer”. Aneta começou por contextualizar os estaleiros de Gdańsk, situados na costa báltica da Polónia, onde se iniciou o processo de desmantelamento do partido comunista com uma das maiores greves de trabalhadores locais em 1980. Fruto da crise económica e política consequente, a comunidade laboral decresceu e este local tornou-se um vazio urbano. A ausência da comunidade num território tão vasto e importante para a história local promoveu, desde o ano 2000, o aparecimento de novas práticas artísticas pensadas a partir do contexto do lugar.
A criação de Alternativa - Festival Internacional de Arte Contemporânea Visual - teve um papel central para “investigar as diversas formas de intersectar a arte contemporânea e a política” e “explorar possíveis formas de agir na contemporaneidade e analisar a atmosfera do momento político e suas possibilidades” [2]. Esta intervenção procurou criar um vocabulário visual que contribuiu para diluir questões políticas ainda muito presentes naquela comunidade.
Durante as últimas duas décadas, as novas práticas artísticas e curadoriais desenvolvidas no estaleiro de Gdansk são um exemplo de transformação social e territorial que entrou em rotura com as políticas locais, demonstrando a importância que o ativismo artístico tem quando ligado à especificidade do contexto.
A importância de conectar território, arte e comunidade foi um tema transversal a todo o curso e voltou a ser discutido na sessão da arquiteta e investigadora Elena Lacruz que apresentou “Anti-Monumentos e a paisagem contemporânea – o caso de estudo das Ilhas Canárias”, tema da sua tese de doutoramento [3]. Com base no conceito de “anti-monumento”, a autora defendeu a importância de ressignificar espaços abandonados na paisagem contemporânea, centrando o debate no modo como o anti-monumento “funciona de forma contraditória ao (conceito) de monumento, desconstruindo a sua ideia. Enquanto um monumento traz memórias do passado, um anti-monumento é uma imagem - apocalíptica - do processo futuro” [4].
Elena apresentou a sua análise sobre as paisagens das Ilhas das Canárias, que embora muitas vezes vendidas como paradisíacas, são igualmente lugar de edifícios abandonados resultantes de uma transformação acelerada e violenta da sociedade e dos seus processos de industrialização. O seu discurso caracterizou a ideia de anti-monumento segundo diferentes possibilidades, desde a construção embargada, ao edifício abandonado ou obsoleto até à ruína. Paralelamente, a autora compreendeu, ao longo da sua investigação, que a ocorrência de transgressões artísticas, nestas estruturas desativadas, contribuem para reaproximar a comunidade destes lugares.
Na sessão “Takeover: lugares, histórias e som”, o artista Anton Kats apresentou uma série de projetos e instalações da sua autoria, que sublinham o seu papel enquanto potenciador de inclusão social. “For a Walk With: Dementia in the City”, foi um projeto comissariado pela Serpentine Galleries em 2016 e propôs uma série de caminhadas que demonstram o percurso de uma comunidade com demência dentro do espaço clínico. Este projeto “reflete sobre uma forma intencional de definirmos a prática artística contemporânea com uma utilidade própria, procurando instruir os correntes modos institucionais” [5] e contribuir para o debate aberto de problemas sociais diários.
Para tornar ainda mais claro a importância de relacionar de forma constante e interdependente a comunidade e o território, o arquiteto e curador Jonas Zukauskas, apresentou em duas sessões a sua prática arquitetónica. Na primeira, “Perspetivas sobre a transformação espacial”, expôs através de uma narrativa histórica, a forma como o território das três nações do Báltico sofreu profundas transformações decorrentes dos processos económicos e políticos que operaram durante a União Soviética. Na segunda sessão, “The Baltic Pavilion – o projeto”, o autor apresentou o projeto do Pavilhão Báltico realizado para a 15º edição da Bienal de Arquitetura de Veneza (2016). Este pavilhão tornou-se pioneiro por representar, pela primeira vez, as três nações do Báltico - Lituânia, Letônia e Estónia – e por celebrar simultaneamente o centenário da independência de 1918.
Uma vez que a localização escolhida para o pavilhão Báltico foi o Palasport Arsenale, um equipamento que se destaca da malha urbana que caracteriza Veneza, o projeto do pavilhão incitou um novo layer de contraste através da colocação de um tecido flutuante que interagiu de forma dissonante com o interior do edifício. Esta ideia de fragmentação presente a diferentes escalas, surgiu para colocar em perspectiva a ideia que as nações do báltico contemporâneo são igualmente territórios segmentados pela história do seu passado.
Por fim, este fenómeno de desarticulação territorial sentido nos países bálticos é também tema central na última sessão apresentada por Solvita Krese. A curadora e diretora do Latvian Centre for Contemporary Art, apresentou a temática “Vazio como oportunidade: a cultura como ferramenta de transformação urbana em Shrinking Cities”. Com o fenómeno shrinking cities, decorrente de processos de despovoamento urbano, evidentes no início do século, a autora apresentou práticas artísticas e curadoriais que procuraram valorizar o espaço urbano, intervindo fora do contexto canónico do white cube.
Neste sentido, surgiu em 2009 o Festival Survival Kit, uma plataforma de apoio à transformação sociopolítica e urbana que visava a ocupação de ruínas com novos programas. Esta prática de ocupar vazios urbanos transformou de forma paradigmática o território de Riga, quando em 2013 surgiu uma campanha que colou por toda a cidade autocolantes amarelos com a mensagem Occupy Me. Solvita explicou que esta intervenção artística sinalizou os edifícios vazios por toda a cidade, de forma a evidenciar a elevada quantidade de espaços desocupados onde poderiam surgir importantes iniciativas culturais.
O sucesso desta intervenção fundou em 2014 a Free Riga, uma organização que criou um sistema de uso temporário de edifícios vazios, potenciando a criação de eventos culturais que acrescentaram valor ao edifício existente e possibilitaram o seu uso a baixo custo. Free Riga definiu-se como um movimento artístico que estimulou a transformação e valorização urbana, através da implementação de processos artísticos que produziram um novo sentido de cidade e também de comunidade.
Após o ciclo de reflexões, onde foram evidenciadas um conjunto de iniciativas que construíram um novo panorama cultural no Leste da Europa e contribuíram para a transformação social e política dos territórios onde atuaram, debruçamo-nos sobre a área do Freixo. Um fragmento territorial situado na zona oriental da cidade do Porto, que ao longo dos anos tem sido espaço de reflexão, mas no qual continua a ser necessário abrir canais de diálogo que repensem o lugar e a sua inserção no contexto das transformações urbanas mais recentes.
Numa primeira aproximação ao lugar, realizou-se uma caminhada guiada pelo geógrafo Jorge Ricardo Pinto, que descreveu uma visão histórica desta parte da cidade, onde as sucessivas intervenções foram rompendo as relações com o tecido envolvente.
Delimitada pela presença de um cemitério, de linhas ferroviárias, o rio Douro e a ponte do Freixo, esta área urbana expectante é cada vez mais apetecível ao investimento privado, mas o declive acentuado da encosta, a dificuldade de criar uma conexão entre parte alta da cidade e a zona baixa e a presença de barreiras urbanas, parecem justificar a falta de ações. O geógrafo Jorge Ricardo Pinto, tem desenvolvido uma longa investigação sobre este local e desde 2004, incita para o Freixo “soluções criativas que, sem demasiados compromissos urbanísticos, permitam a inter-relação entre territórios” [6].
A procura de um novo contexto para o Freixo tem surgido ao longo do tempo e a partir de várias intervenções, como foi o caso da análise espacial e fotográfica do colectivo Espacialistas [7] que há 10 anos procuravam as potencialidades deste espaço, mas também os percursos performativos do colectivo Circolando que há 5 anos caracterizaram este território entre “Terra Vaga, Babilónia e HoMo Ludens” [8]. Apesar do extenso intervalo de tempo e das inúmeras interferências artísticas que procuraram novas funções para este local, parecem não ter surgido qualquer tipo de soluções capazes de uma renovação mental ou espacial do Freixo.
Incentivando uma nova procura de meios para reativar este território e com o objetivo de debater ideias e estimular ações, realizou-se o workshop Takeover Infraestrutural do Freixo, que percorreu os mesmos espaços e problemáticas mas instigou sobre novos sentidos.
A partir da prática de Anton Kats, realizou-se num primeiro momento uma análise sonora do espaço. Ao perceber os sons que caracterizam o Freixo, destacaram-se ritmos díspares neste território: os comboios que passavam pelas linhas ferroviárias, as máquinas das construções vizinhas, as sirenes das ambulâncias e o trânsito da ponte, o falar apressado das pessoas, o bater de portas e o chilrear dos pássaros. Todos estes sons, tecnológicos, humanos ou naturais, permitiram interpretar este espaço de uma forma sensorial para conceber uma análise imaterial do lugar.
O Freixo, palco de variadas ações no tempo longo da sua existência, foi também durante esta semana, alvo de um takeover que promoveu a discussão aberta e contínua e resultou em dois momentos performativos propostos pelos participantes do workshop.
Num primeiro momento, surgiu um diálogo dentro do antigo túnel desativado, onde cada interveniente contribuiu para a criação de uma história colectiva sobre o contexto do Freixo no Presente, reativando este espaço com novas memórias. Num segundo momento, explorou-se o território a partir de dispositivos artísticos criados para interferirem com a visão e estimular os outros sentidos a ler o espaço de forma diferente. Quando a visão está parcialmente obstruída, recorremos ao som e ao toque para orientar a nossa percepção espacial. A descoberta de novas sensações sobre um objeto já reconhecido abre um espectro de interpretações que expandem as possibilidades de representar a realidade. O Takeover Infraestrutural do Freixo procurou novas dimensões do real para reconstruir as formas de ver e ler o território e com isso encontrar novas possibilidades de o transformar.
“O Porto Oriental é um território transgénico, híbrido, multitemporal que se entende como “reserva natural” para o mesmo produtivismo neoliberal e especulador que assola as cidades. Se a velocidade com que se planeia intervir propõe compensar as assimetrias e a desestruturação de décadas, não podemos esquecer que ela é em grande parte espoletada pelo esgotamento do mercado e das oportunidades nos centros.” [9]
Com isto, importa salientar que as Práticas Pós-Nostálgicas resultaram numa abordagem artística sobre a necessidade de reconstruir este território, que ao longo dos últimos anos tem vindo a ser discutido e interpelado por diferentes agentes culturais. Todas as práticas e ações despoletadas no Freixo, mas também todos os exemplos apresentados neste curso de cultura e pensamento crítico têm, como principal objetivo, a inclusão e reintegração de um fragmento do território ou porção de cidade no conjunto alargado dos processos sociais, culturais e políticos que o rodeiam.
Num espectro mais alargado, importa também compreender que a arte e as práticas artísticas podem e devem ter um papel importante nesse processo de inclusão territorial. Muitas vezes estes territórios são marginalizados e esquecidos pela singularidade e hibridez da sua natureza sofrendo de estado de amnésia que os torna invisíveis. Mesmo quando os ciclos económicos são mais favoráveis e o investimento privado abrange áreas urbanas mais distantes do centro, como é o caso atual da zona oriental do Porto, territórios como o Freixo podem ficar reféns de ações singulares sem que exista uma estratégia comum e geradora de compromissos entre o imaginário colectivo e o Futuro que se pretende construir.
Este curso de cultura e pensamento crítico, contribuiu para mudar a forma de ver o território do Freixo e abriu espaço para discutir sobre as suas problemáticas junto de órgãos de decisão que podem agir perante as reflexões produzidas. A justaposição entre a iniciativa Colectivos Pláka promovida pela Câmara do Porto e as tutoras do curso, revelou uma oportunidade de debater ideias sobre um território indefinido, no qual o conjunto de pessoas [10] puderam contribuir com perspectivas individuais para um debate colectivo.
“O território não é algo predefinido ou estável. A ideia de território vai-se construindo pelo conjunto de acções, leituras, representações, discursos e debates colectivamente produzidos em torno daquilo que se (re)conhece como qualquer coisa de comum e que confere sentido à realidade” [11].
O posicionamento de diferentes ideias, de forma não hierárquica, trazem para o mesmo território novos pensamentos e práticas que estimulam a sua mudança. Desta semana resultou um arquivo online [12] e uma futura publicação de um glossário ativo, que pretende constituir-se enquanto base comum de entendimento para a construção de uma rede de conceitos para compreendermos melhor este território. Ao recriar o sentido de várias palavras e usar um léxico próprio, criamos um instrumento/base de entendimento para futuras ações.
Patrícia Silva Coelho
Arquitecta pela Universidade de Coimbra, actualmente partilha o seu tempo entre a prática profissional e o Mestrado de Estudos de Arte em Curadoria e Museologia na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
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Notas
[1] Uma iniciativa da plataforma PLÁKA e comissariada pela Câmara do Porto. Já na segunda edição, o projeto organizou três cursos ao longo de 2019 que promovem o pensamento sobre práticas artísticas contemporâneas. Disponível em: http://www.plaka.porto.pt/pt/colectivos-plaka/
[2] Alternativa, «ALTERNATIVA - International Contemporary Visual Arts Festival», Culture.pl (blog). Disponível em:
https://culture.pl/en/event/alternativa-international-contemporary-visual-arts-festival
[3] Elena Lacruz, «Anti-monuments of the Canary Islands: Modern Ruins and Abandoned Places as Elements of Identity and Transformation of Touristic Landscapes» (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, 2019).
[4] Elena Lacruz e Juan Guedes, «Anti-monumentos. Recordando el futuro a través de los lugares abandonados.», rita_,2017.
[5] Studies on a Road, «For a walk with: dementia in the city» (Edgware Road Project, 2018).
[6] José A. Fernandes e Jorge Ricardo Pinto, «A marginal do Porto, da Ponte D.Luís I ao Freixo», O Tripeiro, 2004. p.271
[7] “Projecto arquitectónico/artístico laboratorial de análise e de alteração programática do espaço. Utilizam a fotografia e o vídeo como dispositivos de desenho, de pensamento, de percepção e de diagnóstico do espaço natural e construído.” in Filomena Lopes Nascimento, «A relevância do estudo sociológico do lugar para o desenvolvimento projectual em arquitectura» (Dissertação de Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público, Universidade do Porto, 2011). p.88
[8] O colectivo Circolando coreografou o espectáculo (2015) “Espírito do Lugar 1.0: Bonfim – Campanhã” parte do projecto “Walkscapes, o caminhar como prática estética. Andar à deriva, errar, perder-se na cidade. São os próprios espaços a primeira matéria criativa.” in Circolando (blog). Disponível em: https://circolando.com
[9] Inês Moreira, «Euforia, Nostalgia e Transgenia no Porto Oriental», J-A Jornal Arquitectos, Setembro de 2018, nº257. p.19
[10] O debate Práticas Pós-Nostálgicas contou com a presença das tutoras: Inês Moreira e Aneta Szylak; os convidados: Anton Kats, Elena Lacruz, Jonas Žukauskas, Jorge Ricardo Pinto, Solvita Krese; os participantes Almudena Martins, Beatriz Duarte, Beatriz Takahashi, Bruno Almeida, Carla Gonçalves, Juan Toboso, Leticia Costelha, Martín Molín, Miguel Teodoro, Orlando Castro, Patrícia Azevedo, Patrícia Coelho, Sérgio Magalhães.
[11] Álvaro Domingues e Nuno Travasso, Território: Casa Comum (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2015). p.26
[12] Desenvolvido pela investigadora Laurem Crossetti. Disponível em: https://postnostalgic.wordpress.com