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VICARA: A ESTÉTICA DA NATUREZA
CARLA CARBONE
A estética da natureza pode ser benéfica para a sociedade e para o ambiente? Pode.
Estava a lembrar-me das belas esculturas em cerâmica de Bela Silva, ou dos seus desenhos a evocar a beleza das plantas e cores da natureza; ou ainda da força das árvores, em lugares que despertam o sagrado, como as vivências do artista Pedro Vaz, em plena sede da natureza. Ou ainda os troncos das árvores que, no seu cerne, servem de molde para o nascimento de delicadas estruturas em vidro, cristalinas, como as que nos habituámos ver, do designer Samuel Reis, sobretudo o impressionante conjunto de peças “Cerne”.
Cerne, garrafa e copos, por Samuel Reis para VICARA.
Nos já idos anos de 2000 Tord Boontje terá sido dos primeiros designers a reconhecer, sem tabús, essa vitalidade e força provenientes das formas da natureza, essenciais para que possamos sobreviver. As suas estruturas/candeeiros, “Garland”, baseadas em motivos florais evidenciaram, já nessa altura, pós-industrialista, a emergência do design em orientar-se no sentido da natureza. E fê-lo sem medo. Encetou toda uma celebração das formas, de pequenas flores, que, subtis, despontavam, e irradiavam de pequenos pontículos de luz.
A cultura moderna ainda reprime esta exaltação pela natureza, esta celebração do que nos confere continuidade enquanto espécie, e também do que permite o direito à vida das outras espécies.
“O progresso parece não ser mais valorizado”, dizia-nos Branzi, em 1985, em tom de manifesto.
A natureza humana versus a “natureza artificial dos mecanismos”, parece ser uma eterna disputa. Na realidade Branzi ainda salienta o conceito de “neoprimitivismo”, um conceito que não pertence ao design moderno, no sentido da moda, e que não deseja ser o último “grito” de “avan-garde”, mas um conceito que representa “precisamente uma condição em que várias linguagens e atitudes depressa se fundem”, convergem e interagem.
Aliás, é nesta atitude, que neste preciso momento, volta a ser permitido um elogio ao “decorativismo" naturalista e que, no decorrer do tempo, desde esse escrito de Branzi, até hoje, se tem vindo, a introduzir, a pouco e pouco, uma linguagem naturalista na cultura do design.
Há várias formas de “atacar” o problema”, e uma delas pode ser através de uma escolha criteriosa do material a usar, e da “escuta” da natureza, ela própria autoreguladora, ou seja, do modo como os materiais, sobretudo os naturais, dão resposta ao que o design procura quando os modela, ou deixa que os mesmos modelem o seu processo.
A questão aqui não se prende já com o modo como o designer domina o material, mas a forma como o material apresenta pistas para o designer, visto poderem ser importantes até do ponto de vista social do uso dos materiais, como a escolha dos mesmos na produção e consumo de objectos.
O designer pode assim ser esse agente motivador de uma escolha sustentada. Pode ter um compromisso social, através de uma participação mais activa junto da sociedade civil. “Acção privada para o bem público”, como diria Victor Margolin. Uma acção que, embora suave, já represente uma expressão subtil em sociedade, e já comunique à "acção do estado".
É muito interessante o que Victor Margolin evidencia no seu texto “Curar o Mundo: Um desafio de designers”. No terceiro parágrafo ele menciona como Heidegger entende o mundo: “um fenómeno sujeito a permanente conflito (…) onde se verifica uma “luta entre visões do mundo”.
Desse modo, para Heidegger, “toda a acção humana se baseia e é suportada por uma visão do mundo”. "A política não concentra apenas no exercício do poder; o processo político passa eventualmente pela construção de uma razão fundamental para o poder, e pela afirmação da hegemonia dessa razão sobre todas as outras”.
Assim, temos visões do mundo que condicionam e retardam até as acções e medidas ambientais que devem ser levadas a cabo o quanto antes, e que não são tidas em conta como outras que são prioritárias para os estados e para as comunidades, mas menos urgentes que as primeiras. Abandonando, ou adiando, medidas e objectivos a longo prazo.
O próprio design, durante muito tempo, é responsável por esse adiamento, e ainda hoje, mantém uma conotação com as classes sociais mais favorecidas, no desenvolvimento do mobiliário mais atractivo. E esse constitui, igualmente um problema. Os designers, ainda hoje, retardam em desempenhar o seu papel activo nas políticas da sociedade civil. A sua falta de envolvimento não passou despercebida, tendo algumas vozes isoladas chamado à atenção para esse facto.
Uma das figuras mais importantes nesse despertar para consciência ambiental/social do design foi Victor Papanek. Numa perspectiva de ecologia humana e de mudança social, Papanek expôs a visão de que o design deve ser consciente da sua responsabilidade social e moral. Mas não foi o único, muitos anos antes William Morris já defendia o socialismo prático, movimento cujos fundamentos herdara de John Ruskin, e que proclamava o “ódio à civilização moderna”, palavras de Morris.
E é nessa acepção ambientalista e localista que se inscreve e se desenvolve a prática da VICARA. Editora sediada em Leiria, com começo em 2011, assenta a sua prática num princípio experimental de criação de objectos, numa visão e operacionalidade baseada no experimentalismo que permite escutar as ressonâncias naturais dos materiais, as suas nuances, as suas vozes internas, conduzindo por isso a linguagens perfeitamente novas e desafiantes.
Caruma, por Eneida Tavares para VICARA.
O que os materiais, como o vidro, a pedra, a madeira, a cerâmica, o barro, oferecem é diverso, e ambientalmente motivador. Estava a pensar nas peças “Cerne”, já referidas, de Samuel Reis, tal como as peças “Caruma”, de Eneida Tavares, rematadas e entretecidas com agulhas naturais de pinheiro; o “Poliedro” de Victor Agostinho; a “Calçada B/W” de Margarida Pereira; o “Cimento” de Jorge carreira; a peça “Cartonado” de Fabio Afonso.
Nata, lâmpada de mesa, por Gonçalo Campos para VICARA.
Ou ainda as peças “Nata”, de Gonçalo Campos, que evocam o passado, acentuando a importância do prolongamento da vida dos objectos, reforçando os princípios de quem se preocupa efectivamente com o ambiente. Sabe-se que a visão moderna exalta(va) o novo, e esse novo desperta(va) insatisfação e urgência em produzir mais. Uma acepção apreciadora do passado, neutraliza e trava este impeto produtivo.
Os designers que compõem esta editora, contam com a importante presença da figura de Paul Sellmayer que tem sido um elemento modelador, criador e motivador da editora.
Carla Carbone