|
AALTO — ONDE ALVAR ENCONTRA ÁLVARO
JOÃO ALMEIDA E SILVA
17/10/2025
Em Portugal, é difícil não pensar em Alvar Aalto (1898–1976) como uma das grandes referências da arquitectura moderna — e, em particular, como uma das influências mais profundas sobre um dos maiores arquitectos portugueses de todos os tempos: Álvaro Siza. A visita a esta mostra constitui uma excelente oportunidade para ver projectos e materiais inéditos da obra dos Aalto e, ao mesmo tempo, confrontá-los com um edifício projectado por um dos seus assumidos discípulos.
Conta-se que, ainda jovem, Siza recebeu de Carlos Ramos — seu mestre na Escola de Belas-Artes do Porto — o conselho de comprar algumas revistas de arquitectura. Entre as quatro que adquiriu, uma era inteiramente dedicada a Alvar Aalto – L’Architecture d’Aujourd’hui, Aalto, Paris, n.º 29 (1950). Esse “encontro” fortuito acabaria por marcar, de forma silenciosa mas duradoura, o seu percurso. A afinidade manifesta-se em obras tão distintas como a Casa de Chá da Boa Nova ou a nova Ala Álvaro Siza do Museu de Serralves — talvez a sua segunda casa.
É precisamente neste novo espaço da Fundação que se apresenta agora uma vasta e detalhada exposição intitulada simplesmente “Aalto”. O título, de aparente simplicidade, é já uma chave de leitura: ao optar apenas pelo apelido, não se apaga a presença determinante das duas mulheres que marcaram a obra do arquitecto finlandês — Aino Aalto (1894–1949) e Elissa Aalto (1922–1994), antes se reconhece o carácter colectivo e contínuo da sua criação.
Embora organizada de forma cronológica (1920–1994), a exposição propõe ao visitante um ponto de partida inesperado: o meio. O percurso inicia-se na Sala 8, onde o belíssimo triângulo da nova Ala Álvaro Siza encontra, invertido, o seu eco formal no Pavilhão da Finlândia na Bienal de Veneza de 1956. É um diálogo subtil entre espaços, tempos e geografias — um cruzamento onde Siza reencontra Aalto.
Vistas da exposição Aalto, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto, de 17 de junho de 2025 a 4 de janeiro de 2026. Foto © Filipe Braga
Nesta “falsa primeira sala”, intitulada Crónicas, o visitante é recebido pela fotografia do autor e, logo abaixo, protegida por uma vitrina, encontra-se a Medalha Alvar Aalto original, atribuída a Álvaro Siza em 1988. Na mesma sala, o Estúdio Aalto em Helsínquia é apresentado lado a lado com uma das suas obras mais icónicas, a Casa Experimental de Muuratsalo (Jyväskylä, 1952–54), e com uma das mais inesperadas: o barco Nemo Propheta in Patria (Ninguém é profeta na sua própria terra, 1954–55). [1]
A exposição é, pois, uma viagem no tempo e na forma. Partindo desta “sala intermédia”, o visitante pode optar por avançar até 1994 — Sala 15, à direita —, ou recuar às origens de 1920 — Sala 1, à esquerda. A escolha, simbólica, reflete o próprio espírito de Aalto (e de Álvaro): entre o passado e o futuro, entre o humano e o natural, entre a intuição e a razão.
Recuemos, então, a 1920. A mostra está dividida em 15 salas, que apresentam 31 projectos do mestre finlandês, desenvolvidos em colaboração com ambas as companheiras. Cada sala é simbolicamente nomeada a partir de temas bíblicos, “enfatizando o impacto da fé luterana na sua obra” [2], e a narrativa progride cronologicamente até 1994, ano da morte de Elissa. Durante o percurso, exibem-se projectos, maquetas, objectos e documentos — entre eles, a própria revista L’Architecture d’Aujourd’hui que o jovem Siza comprou.
As cinco primeiras salas correspondem aos cinco livros do Pentateuco — Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio — revelando, tal como na Bíblia, a base de um pensamento em formação.
Em Génesis (Sala 1), destaca-se a Biblioteca de Viipuri, Vyborg (1927–35), actualmente em território russo, projecto fundamental na obra de Aalto, cujas clarabóias marcantes Siza evoca na Biblioteca de Aveiro.
Vistas da exposição Aalto, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto, de 17 de junho de 2025 a 4 de janeiro de 2026. Foto © Filipe Braga
Êxodo (Sala 2) centra-se no Sanatório de Paimio (1929–33), apresentado através de desenhos originais e fotografias, e de uma maqueta expressiva que domina o espaço.
Em Levítico (Sala 3), sobressaem a Artek (1935) [3] e a Casa Aalto, Helsínquia (1935–36); enquanto Números (Sala 4) apresenta a Fábrica de Celulose e Área Residencial de Sunila, Kotka (1936–38, 1947, 1951–54) — onde se pressente algo do Bairro da Bouça de Siza. O destaque, porém, é a célebre Villa Mairea, Noormarkku (1937–39).
Vistas da exposição Aalto, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto, de 17 de junho de 2025 a 4 de janeiro de 2026. Foto © Filipe Braga
Deuteronómio (Sala 5) encerra este primeiro “penta” com duas obras realizadas nos EUA: o Pavilhão Finlandês na Feira Mundial de Nova Iorque (1939) e o Dormitório MIT Baker House, Cambridge (1947–49), ambos caracterizados pelas curvas elegantes que também encontraremos em Siza (basta pensar no Bonjour Tristesse). É, talvez, nesta fase que se consolida a base, o amadurecimento e a internacionalização do pensamento dos Aalto, cuja obra, entre as duas guerras, contribuiu para afirmar a jovem nação finlandesa no panorama internacional — dos congressos CIAM às Exposições Universais de Paris e Nova Iorque.
Vistas da exposição Aalto, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto, de 17 de junho de 2025 a 4 de janeiro de 2026. Foto © Filipe Braga
As salas seguintes seguem igualmente os livros do Antigo Testamento — Juízes, Reis, Crónicas, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e Lamentações — com excepção das duas últimas, inspiradas no Novo Testamento: Actos e Apocalipse.
Nelas, o visitante encontra Universidades, Câmaras Municipais e Centros Cívicos; Casas — com destaque para a Maison Carré — e edifícios habitacionais — como o Interbau de Berlim (1956–58) [4]; Igrejas na Alemanha e na Finlândia; a Ópera Aalto; e a Livraria Académica, com as míticas clarabóias que Siza tão bem apropriou na Biblioteca da Faculdade de Arquitectura. Bibliotecas e Museus completam o percurso — obras situadas, na sua maioria, na Alemanha e na Finlândia.
Quando aproximamos Aalto de Álvaro, aproximamos também uma certa periferia: dois países marcados por um desenvolvimento industrial tardio, que levou ambos os arquitectos a conceber o projecto como obra de arte total — onde tudo é desenhado. Em Aalto, isso inclui o mobiliário, os candeeiros, o vidro (as célebres Jarras Savoy, também expostas [5]); em Siza, o desenho de objectos do quotidiano.
A exposição encerra em Apocalipse (Sala 15), onde se apresentam as últimas obras de Aalto e Elissa. Mas é ao olhar para trás, já à saída, que o visitante se detém diante da reprodução, à escala real, da sequência de curvas do Pavilhão Finlandês de 1939: imponentes e subtis, revelam a harmonia entre forma e emoção que tanto marcou Aalto — e inspirou Siza. Ali, Aalto encontra Álvaro — um dos seus grandes discípulos, há muito também ele um mestre.
“Aalto” é uma exposição organizada pela Fundação de Serralves – Departamento de Arquitectura, em colaboração com o Alvar Aalto Museum, com curadoria de António Choupina, Director de Arquitectura da Fundação de Serralves, e coordenação de Diana Cruz e Sónia Oliveira.
Patente até 4 de Janeiro de 2026.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
:::
Notas
[1] Note-se que a Finlândia tornou-se independente em 1917 e ate 1950 a sua economia manteve um perfil muito rural, antes de se industrializar daí em diante.
[2] Comunicado da Fundação de Serralves.
[3] Em 1935, foi fundada a Artek com o objetivo de promover a crescente produção e venda de mobiliário desenhado por Aalto. O design do seu mobiliário combinava praticidade e estética com produção em série, seguindo a principal ideia da Artek de incentivar uma vida quotidiana mais bela no lar.
[4] Que, de algum modo, evoca o Golfinho, de Manuel Graça Dias.
[5] No que diz respeito ao design, Aalto demonstrava um particular interesse pelo vidro, pois oferecia a oportunidade de trabalhar o material de uma forma inovadora, com formas livres. A sua vitória no concurso de design de vidros Karhula-Iittala, em 1936, levou à criação do mundialmente famoso vaso Savoy.