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ANA LÉON
28/04/2025
Conheci pessoalmente Ana Léon (Lisboa, 1957) em 2021, em Paris — cidade onde a artista reside — após alguns anos de trocas de e-mails e telefonemas. O nosso encontro aconteceu no bairro de Châtelet, num típico café parisiense. As palavras foram poucas — as palavras são sempre poucas com Ana Léon — mas compreendo hoje (ou penso compreender) que é no silêncio que ela melhor se expressa.
Embora trabalhe com a imagem — por vezes de forma quase obsessiva — e a dimensão sonora dos seus filmes seja tão marcante quanto a visual, é naquilo que se insinua, na ambiguidade que provocam, que os seus filmes realmente falam. Tudo neles é sugerido, nunca imposto, para que no fim seja o espectador a decidir o que está, afinal, a ver. Talvez essa seja uma das formas mais belas de liberdade.
Esta entrevista tem como ponto de partida a exposição Gestos, atualmente patente no MAAT, onde a artista apresenta seis filmes.
Por Raquel Guerra
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RG: No texto de entrada da exposição Gestos lemos: "Todas estas leituras (e outras que cada visitante fizer) são deixadas em aberto pela artista, que insiste em não desenvolver discursos verbais e interpretativos sobre o conjunto da sua obra (...)."
Esta afirmação deixou-me apreensiva, uma vez que me propus a construir um conjunto de questões a partir da exposição e do seu trabalho.
Gostaria de lhe perguntar: qual a razão para essa recusa em desenvolver discursos interpretativos sobre o conjunto da sua obra?
AL: A questão, neste caso destes filmes, não é de não falar sobre os mesmos. Mas é minha intenção que não exprimam uma ideia em particular. E o que pretendo, para além de criar uma certa ambiguidade, é de provocar emoções e múltiplas interpretações naquele que os observa, seja qual for o meu ponto de partida ou os «personagens» que utilizo. Parece-me ser essa, a finalidade de um trabalho criativo.
RG: Gostaria de me focar em alguns aspetos concretos de obras que me chamaram particularmente a atenção durante a visita, começando pela peça Se regarder.
Para além da reflexão que o título já sugere — o confronto com a própria imagem, com o "eu" e todas as questões de identidade que daí decorrem —, senti também, ao observar a obra, uma forte tensão, quase uma sensação de violência.
Houve momentos em que me pareceu que o espectador era colocado perante uma cena de violência sexual.
Podemos falar de violência nesta peça? Esta dimensão esteve presente na sua conceção?
AL: Cada ponto de partida para um filme pode surgir de uma imagem, uma situação, um movimento, um gesto. Depois vai evoluir até se tornar um projeto.
Em «Se regarder» há forçosamente referências ao «duplo» através da sua imagem no espelho…. Claro que isso não exclui que, através dos movimentos repetitivos, através da imagem que se deforma, se dilui, possa ser interpretado de diferentes formas ou conter outras dimensões que não estavam forçosamente na sua origem.
E que o observador dê largas à sua imaginação ou fantasias não considero que seja um problema.
RG: Achei interessante a forma como o som não só acompanha, mas parece amplificar a experiência sensorial das obras. Sinto que a sonoridade não é apenas um fundo, mas um elemento ativo na construção da narrativa e na intensificação da psicologia da personagem. De que forma o som e a imagem se "fundem" ou se desafiam mutuamente no seu trabalho?
AL: De facto, nos meus filmes, o som é tão importante como a imagem.
É trabalhado posteriormente (depois do filme ser digitalizado) quase da mesma forma minuciosa como as imagens são captadas (por «stop motion») podendo ser repetido, deformado, alongado, etc., conforme o resultado que quero obter.
RG: A dimensão sonora parece-me um elemento fundamental em quase todas as obras expostas.
No entanto, o som da peça Se dédoubler chamou-me particularmente a atenção — parece quase pertencer ao domínio da alucinação.
De repente, a personagem desdobra-se, ou multiplica-se, numa viagem que quase roça o psicadélico.
Qual é o papel da dimensão sonora na peça Se dédoubler?
AL: No filme « Se dédoubler » , o som não tem mais importância que em qualquer outro. Pretende sempre acompanhar a intensificação da imagem. É isso o essencial.
RG: Na peça Se retourner, seis personagens masculinas executam uma coreografia sincronizada, mas, a certa altura, essa sincronização é interrompida. Cada uma das personagens começa a realizar um movimento distinto, até que, no final, todos se reencontram e voltam a sincronizar-se.
Essa quebra da sincronização e a posterior reconciliação dos movimentos podem ser vistas como uma metáfora para o processo de encontrar a calma depois do caos?
AL: Neste filme, como noutros, a lentidão das imagens («ralenti») põe em evidência a questão do tempo: quando estou a «acelerar» ou a «diminuir» a velocidade de uma ação/movimento, estou a criar outra noção do tempo (que não podemos controlar); neste caso os movimentos são extremamente lentos, depois dessincronizados, e só no final se sincronizam num movimento rápido.
RG: Na peça Avancer, tal como em Se retourner, observamos uma coreografia sincronizada, desta vez com sete personagens masculinas. O som de respiração ofegante acompanha toda a performance, criando uma sensação intensa.
Qual é a importância desse som na peça? Ele funciona como um reflexo da tensão física e emocional das personagens, ou há outra leitura que gostaria de explorar através dessa sonoridade?
AL: O som, como referi anteriormente, intensifica os movimentos dos personagens. E, sim, pretende aumentar essa tensão criada pelos personagens.
RG: Na obra Percevoir, várias personagens sucedem-se umas às outras, quase como se surgissem umas das outras. A certa altura, elas parecem literalmente sair de dentro umas das outras, criando uma sensação de interligação. O som da peça remete para o som de uma máquina de suporte de vida, reforçando uma ideia de continuidade e, ao mesmo tempo, de fragilidade.
Como vê a relação entre o humano e a máquina nesta obra, especialmente considerando o som da máquina de suporte de vida? A interligação das personagens e o som quase clínico sugerem não apenas uma continuidade, mas também uma dependência entre o humano e o tecnológico, como se essa fusão fosse inevitavelmente ligada à ideia de morte e à sua presença constante?
AL: Neste filme («Percevoir») podemos de facto interpretar o som destas «respirações» adicionadas às imagens como uma ideia de renovação constante, ideia de vida/morte. Embora não seja a única.
RG: "Num boneco que cai, sonha-se um corpo que cai, sonha-se a queda de um corpo, sonha-se o corpo da queda", escreveu Luís António Umbelino no catálogo da exposição Corpos (CAPC, 2020). Ao ler esta passagem, lembrei-me imediatamente de Tomber, uma obra que está presente em ambas as exposições.
Que corpo é este — ora inteiro, ora fragmentado, ora vivo, ou talvez não — que vemos nesta obra? Como é que a queda, o corpo e a sua possível fragmentação se associam neste contexto?
AL: São corpos que caem. Movimentos repetidos (repetição obsessiva) sendo cada vez mais lentos, como se, a uma dada altura, se pudesse parar esses movimentos das quedas dos corpos…
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Raquel Guerra (Porto, 1976) é doutoranda em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, onde desenvolve a tese A prática curatorial: uma análise crítica. Curadora, tem colaborado em diversos projetos ligados à arte contemporânea em Portugal. Tem-se dedicado à gestão de coleções de arte contemporânea e de espólios de artistas, como o da artista Maria Lino. Co-organizou, com a artista Ção Pestana, o seu portefólio Ção Pestana 1977–2017. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em 2011, realizando uma residência curatorial no Brasil (Rio de Janeiro e São Paulo), no âmbito do programa Capacete. Em 2021, realizou uma residência curatorial no Centre Photographique d’Île-de-France, com o apoio da Câmara Municipal do Porto (Programa Shuttle). Em 2022, participou no programa Curator Tour – Expériences Curatoriales Nomades, a convite da Air de Midi – Réseau art contemporain en Occitanie. Foi diretora do Centro de Arte Oliva e do Centro de Arte de São João da Madeira. Atualmente é artist’s adviser do International Lab for Art Practices – ILAP_US, um programa da Uncool Artist, e desenvolve o programa de acompanhamento crítico e curatorial para artistas “Encontro-Discussão + Acompanhamento-Concretização”.