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ENTREVISTA


Ângela Ferreira


Indépendance Cha Cha (2014), Ângela Ferreira. Col. de Arte Fundação EDP. Fotografia: Daniel Malhão


Indépendance Cha Cha (2014), Ângela Ferreira. Col. de Arte Fundação EDP. Fotografia: Daniel Malhão


Indépendance Cha Cha (2014), Ângela Ferreira. Col. de Arte Fundação EDP. Fotografia: Daniel Malhão


Indépendance Cha Cha (2014), Ângela Ferreira. Col. de Arte Fundação EDP. Fotografia: Daniel Malhão


Indépendance Cha Cha (2014), Ângela Ferreira. Col. de Arte Fundação EDP. Fotografia: Daniel Malhão


Ângela Ferreira, Entrer Dans la Mine (2013). 3ª Bienal de Lubumbashi. Fotografia: Guy Tillim


For Mozambique I (2008), Ângela Ferreira. Col. Museu Berardo. Fotografia: Luis Colaço.


For Mozambique I (2008), Ângela Ferreira. Col. Museu Berardo. Fotografia: Luis Colaço.


For Mozambique II (2008), Ângela Ferreira. Col. Frac de Rennes. Fotografia: Ângela Ferreira


For Mozambique III (2008), Ângela Ferreira. Col. Centro de Arte Moderna- FCG. Fotografia: Paulo Costa.


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ÂNGELA FERREIRA


Depois da inauguração de Indépendance Cha Cha, na Galeria Lumiar Cité , a última exposição de Ângela Ferreira em Lisboa, a Artecapital foi conversar com a artista sobre algumas das questões que perpassam a sua obra, como o modernismo e a presença deste em África, e o seu processo de trabalho caracterizado por uma abordagem investigativa e crítica dentro do panorama português da arte contemporânea.


por Liz Vahia


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LV: A última exposição da Ângela em Lisboa foi Indépendance Cha Cha, um projecto que derivou da participação na Bienal de Lubumbashi. Tal como noutras obras suas, também aqui encontramos as estruturas escultóricas a servir de suporte para imagens e sons. Sente que as imagens e sons com que trabalha precisam de uma arquitectura própria para serem mostradas?

AF: Nunca me perguntei se elas precisam, se calhar não precisam. O artista está livre de fazer tudo o que quer com qualquer material, mas a minha ideia é que as estruturas ou esculturas, o lado tridimensional que serve de moldura ou de apoio ao material videográfico ou fotográfico, activa esse mesmo material. Vem complementar o material, dialogar com ele. De certa maneira, é uma espécie de sistema de desengatilhar, um sistema de disparo, que incentiva o observador-leitor do trabalho a ler a informação que lhe é dada no material videográfico de uma maneira mais orientada (não diria específica, porque ninguém lê especificamente obras de arte). Isto é uma resposta que se alarga a todas as esculturas que eu tenho feito e que incluem material fotográfico ou videográfico, não é específico do Indépendence Cha Cha, é uma resposta alargada a um princípio que faz com que tanto a escultura fique enriquecida, assim como o material videográfico, que por vezes é criado por mim, mas noutras vezes não é. Por exemplo, nada impede ninguém de ver no Youtube o vídeo do Bob Dylan, presente na obra For Mozambique. Se formos lá, há três milhões de hits no vídeo do Bob Dylan, só que a experiência de o ver contido numa estrutura escultórica e ser desafiado a pensar no Gustav Klutsis, em conjunto com o Jean Rouch, torna-se uma experiência muito específica. É confrontar o Dylan com o Rouch. O caso da série “For Mozambique” faz com que seja mais difícil ao observador evitar a questão de como é que eu vejo o Dylan em relação a África, como é que vejo o Dylan como voyer de uma conjuntura africana, questão essa que provavelmente não é associada ao Bob Dylan muito frequentemente. Mas não pode ser evitada, porque foi o próprio Dylan que fez a canção sobre Moçambique. Ao longo dos tempos aparece sempre alguém que diz, “ai eu lembro-me, adorava essa canção nos anos 70 e sempre magiquei sobre o que é que seria Moçambique porque o Dylan fez essa canção”. Porque o Dylan tinha feito essa canção! Não é que as pessoas não possam fazer essa conexão, mas ali são de certeza de novo convidadas a ponderar. O filme do Rouch é tão claramente etnográfico-africano que é um bocado difícil o observador não pensar “porque é que estes estão juntos?” E a forma como eles estão juntos é através do Klutsis. As esculturas do Klutsis são agit prop, elas não são mais nada do que estruturas políticas, não foram desenhadas como projectos estéticos, foram desenhadas como ferramentas de apresentação de material político. De repente, o filme do Dylon a tocar num concerto, torna-se material político. Não é que o Dylan não fosse um homem político, assim como o Rouch, mas de certa maneira a estrutura é muito afirmativa nesse sentido. Eu lembro-me de estar a desenhar as estruturas do For Mozambique, baseadas nos desenhos do Klutsis, que são maravilhosos e convidativos a divagar formalmente, e fiz centenas de desenhos, mas no fim optei por ficar muito próximo da imagem do Klutsis de propósito. Se eu não remetia o espectador para o Klutsis, se eu não me agarrava ao Klutsis, de certa maneira perdia essa intencionalidade política. A referência ao Klutsis permite que a escultura fique claramente dentro do âmbito “isto é uma mensagem política”.
No Indépendance Cha Cha, a estrutura teve um papel semelhante em termos de principio, é ela que reúne dois materiais videográficos, mas neste caso, porque é referenciada numa arquitectura muito específica, ela é quase como uma memória geográfica de um local que no fundo é o assunto do trabalho. É também o local que une os dois projectos escultóricos, neste caso, a estação de serviço (um edifício modernista de Claude Strebelle) passa a ser o contentor do conteúdo de dois projectos sobre Lubumbashi, e alargadamente sobre o Congo. Uma espécie de contentor das minhas deambulações em torno da minha experiência do país e da história do mesmo. Para mim, a história das minas é provavelmente aquilo que mais me impressionou. Eram imagens que eu já levava do país antes de ir e que são reforçadas enquanto eu estive lá. A presença das minas é tão grande e essas imagens são tão impositivas, tão horrendas, que eu optei por fazer um trabalho que é subtilmente sobre as minas. Às vezes pergunto-me “porque é que não fizeste um trabalho mais documental, porque é que não foste lá filmar as minas?” Eu estive algum tempo nas minas, estive lá com os trabalhadores, estive a falar com antropólogos, então porque é que não fiz um trabalho mais documental, mais directamente sobre as minas? Para mim parecia-me que trabalhar subtilmente em torno da história das minas seria mais poderoso do ponto de vista de significado do que ir directamente ao assunto mostrando horrores, imagens que eu acho que já estamos cansados de ver. Vivemos num mundo complicadíssimo, porque por um lado conhecemos tudo e não conhecemos nada. Não percebemos a profundeza das coisas. Estar a mostrar mais uma cena de horror numa mina, seja ela nas Filipinas, no Brasil, na África do Sul ou no Congo, ou mesmo em Moçambique, parecia-me a mim que era ir bater mais uma imagem já muito cansada, muito vácua, e não falar da especificidade de como o problema das minas me fez pensar enquanto eu estava ali. A estrutura escultórica funciona não só como um mecanismo de despoletar o conteúdo das duas performances, mas é também a memória escultórica do espaço concreto em Lubumbashi e traz por empréstimo muita da história do Congo. Há 10 anos, quando eu comecei a trabalhar nestas questões, talvez ainda surpreendesse falar de arquitectura colonial, mas agora há tanta gente a trabalhar sobre isso e todos sabemos que os poderes coloniais, especialmente os portugueses, os franceses e os belgas, construíram muita arquitectura modernista em África e muita dela ainda está visível a lembrar essa história. A arquitectura tem sempre esse lado político e geográfico, ela está implantada no terreno, faz parte incontestável daquele sítio e daquela história.


LV: As obras da Ângela criam espaços de encontro com as narrativas coloniais. Há um evidenciar de como as ideias mudam quando passam para espaços de significado diferentes, ou seja, quando são apresentadas em galerias?

AF: Eu espero que sim. Neste caso concreto do Indépendance Cha Cha, estou a trabalhar com a tal arquitectura colonial modernista que estava a falar há pouco, e a fazer uma espécie de uma reedição da escultura apresentada no Congo, que depois é trazida para cá como memória desse edifício e contentor dessa história colonial. Mas há um detalhe que para mim é muito interessante, que é o facto de que o material videográfico que é apresentado ali na galeria ser um documento de uma experiencia in loco que se passou no Congo, algo que teve um momento real há seis meses naquele local. Portanto, estou a transportar não só essa experiência viva, esse momento vivido já com conteúdo poético, em que eu peço a dois cantores para interpretar ao vivo e à capela, no meio da rua, mas também a história do sofrimento nas minas e como é que isso se transmitia tradicionalmente. Os performers cantam uma canção onde um rapaz escreve uma carta à mãe e lhe pede para começar a preparar o funeral. Não está doente, mas vai morrer vai morrer, porque vai descer à mina e descer à terra significa morrer. Estamos a ver ao vivo uma performance que aconteceu há seis meses em Lubumbashi, num contentor que remete para uma história que aconteceu lá também, mas de uma forma mais distante, mais espaçada ao longo do tempo, há 50/60 anos. Cruzam-se vários pontos de vista dessa história colonial. E estas coisas mostradas cá são experienciadas de maneira diferente. Não te posso dizer porquê. Há essas disjunções e a escultura não pretende ultrapassá-las, antes assume-as. E a performance tem esse lado: há uns que vêem ao vivo, têm esse momento real, efémero, que acontece e nunca mais é repetido, e todos os outros só têm acesso ao registo, que tem um lado historicizante, firmante. Esse registo nunca substitui o vivo, é outra experiência, que é igualmente válida e que tem sempre alguma distância. Para mim, o vídeo não transmite aquilo que foi mais importante na performance ao vivo, que foi o facto de ter sido surpreendentemente comovente. Tinha também a ver com a conjuntura: era a rua, era a noite, era a estação de serviço a servir gasolina, era o momento de duas pessoas a subirem para a parte de cima de um edifício e cantarem à capela, e depois a cidade a começar a calar-se, ali naquela zona - em 8 ou 9 minutos que eles cantaram - pois nos últimos 2 minutos estava absolutamente silencioso. Aquilo era uma espécie de lenga lenga, porque é só um verso, e eles cantavam em francês e em kibembe. Aquilo que acontece muitas vezes quando se ouve músicas estranhas, de não conseguires ouvir ou entender a letra toda, ali conseguia-se porque como em 8 minutos se ouvia o mesmo verso 20 e tal vezes, como uma canção de criança que se repete, às tantas entende-se o que se está a ouvir. E os performers também entendiam, conforme iam cantando, iam refinando o seu sentimento sobre o material que estavam a cantar. Foi muito comovente. Eu penso que o registo videográfico não consegue transmitir isto.


LV: A noção de “lugar” é um facto importante no trabalho da Ângela. O lugar geográfico e cultural, mas também o lugar mental traduzido num posicionamento crítico face aos temas abordados.

AF: Tentando não ser demagógico, impositivo ou panfletário, por simplesmente respeitar princípios democráticos, o meu trabalho sempre foi político. Sempre houve uma razão de ser política no meu trabalho. E obviamente como tal, não há trabalho político que não queira dizer qualquer coisa. Pode-se usar o método de trabalho “eu vou abordar esta questão, vou abrir esta questão”, mas na verdade vai-se abrir a questão porque se quer dizer qualquer coisa, porque se tem um ponto de vista , e é claro que assumo que tenho um ponto de vista político.

Evidentemente que eu continuo a achar que uma obra de arte não faz bem o seu papel se não deixar a questão aberta ao ponto de vista do observador, que poderá ou não ser influenciado por aquilo que vê. Isso eu já não domino nem quero dominar. Durante muito anos eu não falava desse ponto de vista, respeitando eticamente que as obras é que tinham que falar por si próprias, que elas estavam abertas. Neste momento Eu sinto necessidade de falar e quando me fazem uma pergunta destas é uma oportunidade para o fazer. E falar do facto de que a razão de ser para o meu trabalho tem a ver com o facto de que para mim a relação entre África e Europa não estar ainda resolvida. Ambas as partes fizeram e fazem muitas coisas mal. Os africanos têm sido inaptos a aproveitar as suas independências para construir estados democráticos, economicamente sustentáveis, sendo vítimas de e sendo seduzidos por uma corrupção desmesurada. Mas a Europa ainda não fez os reparos devidos e isso é muito claro para mim. Os danos são muito complexos, são psicológicos, são morais, são físicos, são financeiros, são estruturais. São complexos porque não foi só o colonialismo, foi também a escravatura. Se me perguntarem, para mim a situação ainda não está resolvida. Por mais que haja centenas de jovens artistas a trabalhar no suposto pós-colonialismo, o discurso pós-colonial é um discurso falhado, porque não reparou nada a meu ver ainda. Obviamente que há avanços, há pontos de vista mais abrangentes, estamos todos mais abertos à discussão democrática, tolerante, mas se me perguntarem se o cerne das desigualdades está resolvido, a minha resposta é “não”. Eu não falaria disso geralmente, mas agora quando me perguntam falo, porque acho que é mesmo importante bater com o pé, porque agora ainda por cima estamos numa situação tão bizarra, toda esta adopção do discurso pós-colonial, que é fantástica e estou muito contente que isto exista, mas por outro lado vem encobrir alguns dos problemas profundos de desigualdade e faltas de reparos que a nossa sociedade ainda não fez. Pode-se desmultiplicar estas ideias por vários outros países, assim como quando falo de África é um bocadinho difícil falar do continente inteiro, até porque não o conheço todo e depois porque é tão diferente.
A outra coisa que eu acho importante questionar (isto não transparece literalmente no meu trabalho, mas está presente de uma forma muito subliminar) é que há um enorme desrespeito pela arte contemporânea séria e pensativa em Portugal. Não foi sempre assim, já tivemos momentos de quase estado de graça e também não quer dizer que não há apoios para jovens artistas, não é isso que eu estou a falar. Eu estou a falar de um apagamento da importância do que é a arte contemporânea como um processo de pensamento e de investigação e de avanço na sociedade, o que é o estado da arte no sentido da arte contemporânea. A arte contemporânea não é decorar shoppings, a arte contemporânea não é decorar praças. Não quer dizer que os artistas não decorem praças ou que não se possam ir para a escola de Belas Artes e acabar como decorador de shoppings, e que isso não seja um emprego útil e bom para as pessoas, agora estamos é num momento em que estamos a confundir as coisas. E toda a saga da Joana Vasconcelos é paradigmática desta falta de respeito por uma visão daquilo que é o papel da arte contemporânea na nossa sociedade que nunca foi tão desgastada como agora. O artista era o pensador, o questionador da sociedade, aquele que de certa maneira desafiava a sociedade. E adoptámos uma espécie de um ilustrador nacionalista para divertir o povo. Eu acho óptimo que haja ilustradores nacionalistas para divertir o povo, agora não deviam ser confundidos com artistas com práticas mais sérias. Imagino que haverá outros artistas como eu, eu assumo que a minha arte é investigativa, e assumo que a minha arte é elitista no sentido que é sobre pensar. Nesse sentido, se pensar é elitista, então a minha arte é elitista. Agora vamo-nos perguntar: “pensar é elitista ou não pensar o que é?” é ser indoctrinado ou meramente ser consumista daquilo que nos é impingido. Não tenho bem a certeza. Nesse sentido, a minha prática artística é política, porque eu acredito que a arte é boa para a sociedade, no sentido de questionar as coisas que nós precisamos de questionar na nossa sociedade, para avançarmos e ficarmos pessoas melhores, para podermos agir de uma forma diferente, para planear de uma forma diferente. Para isso temos que ser radicais naquilo que fazemos, não ser decorativos. E eu não sei outra maneira de trabalhar. Radicalizo-me nesta posição de artista, pensadora, investigadora, com uma prática artística investigativa. E isso para mim é uma posição política.


LV: No Entre dans la mine (2013), criou uma escultura evocativa do monumento pensado por Vladimir Tatlin (1919) como homenagem à Terceira Internacional e que nunca chegou a ser construído. O relação dos ideais modernistas com África é um assunto sobre o qual vem trabalhando.

AF: O assunto do modernismo, em África particularmente, mas não só, é uma questão desafiante, e para mim ainda vale a pena estar a pensar nela. É outra daqueles assuntos que ainda não deu o suficiente, ainda pode dar mais. O modernismo em Africa é um projecto utópico, mas é um projecto mal usado, apropriado por um poder político. Os ideais modernistas e utópicos de que nós estamos a falar quando falamos de modernismo e utopia (o desenhar para uma sociedade melhor, mais equitativa), esses ideais foram traídos de forma geral pelos governos colonialistas, que se apropriaram da linguagem modernista para colonizar África. Ao mesmo tempo, no caso por exemplo da arquitectura, os edifícios modernistas que foram construídos têm, por um lado, um aspecto extremamente útil e bem desenhado, ainda funcionais hoje, e por outro lado são desprezados porque representam o tal poder colonial. Ali, como noutros sítios, essa arquitectura funciona muito como uma espécie de metáfora para o próprio projecto modernista, da forma como foi mal apropriado e da forma como ainda é possível reinventá-lo, mas é odiado ao mesmo tempo. É uma espécie de história muito convoluta que se junta ali, particularmente em África, porque os modernismos em África representam o colonialismo e os africanos nem sempre acham que a modernidade ( e a sua manifestação modernista) lhes valeu de muito. De que é que lhes valeu se muitas vezes eles olham para as sociedades e se interrogam “mandaram-nos ser modernistas e olha onde nós estamos”. Estamos mal, estamos muito mal. Será que foi o modernismo? Nunca iremos saber, porque não estamos a falar só de arquitectura, estamos a falar de modernidade, do projecto moderno, muito mais alargado, que tem influencias filosóficas e económicas. É óbvio que eu tenho esperança que os problemas se possam resolver, senão morro. Quando eu digo que em Portugal não há respeito pela arte contemporânea como projecto intelectual não alinhado, é porque eu tenho esperança que volte a haver e que nós possamos construir um momento em que haja arte contemporânea de ponta, respeitável, como há cinema de ponta, como há arquitectura de ponta, literatura e outras coisas, neste país. Eu uso especialmente a arquitectura porque são os artefactos que ficaram. O Tatlin, é um exemplo paradigmático disso. Esse objecto ficou como um símbolo e não uma realidade, nunca foi parido propriamente, ele já estava atrofiado à nascença e acaba por se transformar num símbolo de esperança e de morte ao mesmo tempo. Se pensarmos na obra do Tatlin ou do Klutsis, as linhas formais dos objectos, são belíssimas, são de uma abstracção enorme, de uma limpeza, de um formalismo agradável, resolvido, na verdade, mas os significados que estão por detrás disso tudo são bem deprimentes, são bem aflitivos, asfixiantes.


LV: No olhar para estes futuros imaginados no passado, há um cuidado especial em lidar com possíveis saudosismos?

AF: Quando tu és muito jovem não estás em perigo de ser saudosista. Se tens 23 anos, és saudosista de quê? Mas com a minha idade é diferente. Com a minha idade agora interrogo-me muitas vezes sobre estas questões, porque eu acho que o saudosismo é uma coisa inútil, frequentemente reaccionária e revivalista. E no que diz respeito a Africa então nem se fala. Claro está estou a referir-me ao meu projecto artístico e ao facto de eu entender arte como uma coisa boa, que vale a pena fazer.
Mas não me parece que seja inútil analisar o que está para trás quando planeamos para a frente. Porque para a frente não sabemos o que há, o material que temos é o passado, temos que pensar nele. Faz algum sentido sensato que para mudar de ideias temos que entender os erros. Há certas coisas que não é possível serem inteligíveis a não ser que tu voltes a elas muitas vezes. Por exemplo, o Holocausto e a dificuldade que a humanidade para o entender. Não é que não se tenham morto pessoas a eito noutras partes, mas aquele momento serviu de símbolo e de metáfora para uma espécie de uma mecanização de assassínios que parecia inconcebível e é preciso entender como é que o ser humano chegou ali para nos libertarmos daquilo. A própria ideia de aceitar que temos que entender e tudo o que o entender nos traz às vezes pode ser perigoso, assustador, é difícil. Por isso acho que olhar para traz é útil, mas o saudosismo não acho que seja útil, emite sempre uma ideia de que algo estava a correr bem e agora não está a correr bem, e geralmente esse algo tem a ver com o estar a correr bem para uns à custa de outros.


LV: O percurso pessoal da Ângela também é uma circulação entre territórios distintos. Como é que foi estudar na África do Sul na época do Apartheid?

AF: Foi muito difícil viver como branca num sistema tão horrível, mais do ponto de vista intelectual e emocional, não há maneira de explicar isso de outra maneira. E eu não era “branca” como muitos dos colonos eram em Moçambique, porque os meus pais já nasceram em Moçambique, e eu vi muita gente branca em Moçambique que não se sentia mal com o estado das coisas. Eu passei cá a revolução do 25 de Abril, tinha 15 anos, e quando fui viver para a África do Sul aos 16 e meio, quase 17, estava politizada e lúcida. Portanto, sabia exactamente o que se estava a passar e foi muito duro. Mas não foi duro na pele porque era branca: não fui presa, não fui torturada, não me pagavam mal e tinha privilégios, estudei numa universidade maravilhosa. Portanto, era uma coisa muito bizarra, mas representou para mim um desafio único, que foi a oportunidade de tomar posições e isso é completamente ausente na nossa sociedade. Eu dou aulas na faculdade e a grande dificuldade dos miúdos de hoje é não terem que tomar posições, não sabem tomar decisões, não sentem nenhuma urgência nisso. Vivendo numa situação daquelas não tínhamos outro remédio, ou admitíamos, concordávamos e pactuávamos ou não admitíamos, não concordávamos e não pactuávamos. Se não admitíamos, concordávamos e pactuávamos tínhamos que pensar muito bem quais eram as nossas ideias, o que é que acreditávamos, como acreditámos, ou seja, trabalhávamos imenso! Tínhamos que aprender a pensar, a ter pontos de vista, a entender, tínhamos que trabalhar. Ou juntavas-te a um grupo e fazias qualquer coisa activa. No entanto, tal como eu nem toda a gente tinha perfil de activista, mas mesmo assim havia que decidir como é que se ia enfrentar a situação. De certo modo, como brancos que éramos, estávamos sempre a pactuar, era a lei do país. Mas essa legalidade era doentia e fazia com que trabalhasses imenso para contradizer isso. O resultado é que aqueles que não pactuavam são agora profundamente não racistas. Mesmo assim foi complicado, não fisicamente, mas mentalmente. Quando se viajava, o sul africano branco tinha uma imagem muito negativa no mundo e eu como uma jovem tinha que gerir isso. Mesmo em Portugal, não era nada sexy ser sul africano.
Há pouco fui ao Porto ver uma conferência de arquitectura sobre o SAAL e estava ali perante o creme de la creme da arquitectura portuguesa: o Nuno Portas, o Siza Vieira, o Souto Moura, o Hestnes Ferreira, o Alexandre Alves Costa e todos eles trabalharam no SAAL. Todos tinham trabalhado em processo cooperativos e participativos com os moradores no pós-25 de Abril. E de repente eu percebi “que escola maravilhosa que esta gente teve para pensar e aprender”. Ali há uma aprendizagem política profunda que resultou naqueles arquitectos. E pus-me a pensar “será que estas situações muito complicadas geram situações de aprendizagem únicas, que não se conseguem ter em acalmia e paz?” Isto é horrível de pensar assim, mas não me deixou de passar pela cabeça. A África do Sul foi o laboratório riquíssimo de aprendizagem da minha intelectualidade, do meu questionamento. Mesmo em campos que não eram tão políticos, como por exemplo a arte contemporânea, o contexto político foi marcante. Porque havia um boicote cultural nos últimos anos do apartheid. O boicote cultural e o do desporto foram dos mais eficientes de todos os boicotes e que tiveram mais impacto. Porque aos boicotes económicos só aqueles países que são ricos ou que não têm nada a perder é que aderem, enquanto o cultural é sempre muito fácil, até porque faz muito show off e não envolve muito dinheiro. Como tal, nós estávamos desconectados com o mundo, uma situação que não queríamos. Tínhamos que trabalhar o triplo para estarmos informados. As pessoas inventavam os mecanismos mais bizarros para poderem estar a par e aprendi ferramentas para conseguir saber coisas e saber o que se estava a passar nas principais capitais mundiais. A minha escola tinha verbas para dar a dois alunos de mestrado para irem sempre à Bienal de Veneza e à Documenta para documentarem e depois quando chegavam davam 2 palestras. Se não fosses a essas palestras ficavas desinformado, então toda a gente ia. Tornei-me uma militante de como adquirir e gerir informação. Não sei em que mais é que isso me serviu, mas deu à minha geração uma bagagem incrível para conseguir resolver problemas.