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ALICE DOS REIS
02/11/2025
Alice dos Reis, nascida em 1995, em Lisboa, é artista visual e cineasta. É mestre em Belas-Artes pelo Sandberg Instituut, em Amesterdão e doutoranda em Creative Media em Hong Kong. Em 2019, foi vencedora do Prémio Novo Banco Revelação para jovens artistas e, em 2018, recebeu o Prémio VISIO Young Talent Acquisition. Foi também bolseira da Fundação Botin no âmbito das Artes Visuais (2022-2023) e, anteriormente, recebeu a bolsa Mondriaan Fonds Stipend for Young Artists (2020-2021). A sua prática explora encontros entre corpos, paisagens e crenças através de estratégias narrativas, tais como biografia, ficção e mito. Alice é atraída pela fluidez da ficção científica e da poesia, trabalha principalmente com cinema, mas também se dedica à escrita, escultura e têxteis.
Por Catarina Real
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CR: Interessa-me, mais do que dirigir perguntas a projectos ou obras que tenhas já apresentado, dirigi-las ao continuum do trabalho que tens vindo a fazer. Tomando isto como ponto de partida, e usando uma estratégia delicadamente patética à qual recorro por falta de graça, que mudanças vês na prática desde o momento em que te identificaste enquanto artista e agora? Desdobrando, a pergunta pergunta também quando se deu esse momento de reconhecimento do si enquanto artista, e pergunta também as categorias ou naturezas das mudanças.
AR: É difícil apontar um momento em específico em que me identifiquei enquanto artista. Lembro-me apenas de ter uma certa hesitação em usar essa palavra de forma afirmativa. Se tivesse de escolher um marco, talvez a minha primeira exposição individual, Pálpembrana (Galeria da Boavista, Lisboa). Mas já tinha participado em exposições coletivas e apresentado performances em colaboração com a June João. Muita coisa mudou entretanto. Experimentei caminhos que não me satisfizeram e outros que me aproximaram do que realmente quero fazer. Muitas dessas introspeções têm a ver com o cinema — perceber porque é que este médium continua a fazer sentido para mim, e de que formas e em que escalas de produção quero trabalhar.
Nessa primeira exposição individual, a peça central Mood Keep, era um filme experimental e especulativo que usava texto e voz off para conduzir a narrativa. As personagens humanas eram amigas próximas. Depois disso, quis “fazer um filme a sério”, com uma lógica de produção mais convencional e atores profissionais. O processo foi muito difícil e o resultado não me satisfez.
Nessa altura, um amigo, o realizador Jorge Jácome, disse-me algo como: “devias usar voz off, é o teu forte!”. Mas eu associava essa técnica com o contexto da arte contemporânea e queria provar a mim mesma que conseguia realizar dentro de um modelo mais tradicional.
Curiosamente, acabei por regressar às estratégias do meu primeiro filme: narrativas em voz off, amigos próximos em vez de atores, e uma relação mais íntima e especulativa com as imagens. Outro regresso inesperado foi aos têxteis, que estudei na Escola António Arroio mas tinha deixado para trás.
CR: Ao tentar formular expressões adequadas para me dirigir ao teu trabalho, escrevinhei esta, auto ficção científica. Faz sentido para ti esta designação; artista de auto ficção científica, como um desdobramento quer de categorias como de disciplinas?
AR: Faz algum sentido, sim. O meu trabalho tem uma dimensão autobiográfica e é claramente marcado pela minha relação com a ficção científica, um género que sempre me fascinou. Nos últimos anos percebi que esse interesse funciona sobretudo como um espaço de projeção, onde diferentes temporalidades e subjetividades coexistem dentro de regras narrativas — que depois são quebradas ou habitadas nas suas zonas cinzentas. Gosto de como estas narrativas conectam o pessoal e o local ao global. Essa tensão entre micro e macro reaparece constantemente no meu trabalho. Acho que a ficção científica me deu métodos para trabalhar essas tensões, mas hoje sinto que a minha prática já não está tão cingida a esse, ou qualquer género em particular.
CR: Relacionado com a agregação anterior de palavras, embora não saiba exactamente em que pontos ou linhas, pergunto-me se o sentido mais evidentemente táctil de parte do teu trabalho - como as tapeçarias - se diferencia, na sua feitura, do aparentemente etéreo - como o vídeo.
AR: Se a pergunta é sobre processo, sim, são processos muito diferentes. Mas o meu interesse pelo têxtil não vem tanto de um fetiche pela fibra ou pelos materiais. Eu penso sobretudo em termos narrativos e imagéticos, e é nesse sentido que me relaciono com as tapeçarias de forma muito semelhante ao vídeo: estou a construir imagens que carregam narrativas.
O trabalho em tapeçaria é mais maquinal, no sentido em que consiste em preencher um desenho com linha. Gosto dessa sensação de máquina e até fantasio que o que faço não difere muito de um computador a gerar uma imagem, só que infinitamente mais lento. Ao mesmo tempo, a tapeçaria exige do corpo atenção e destreza, mas deixa espaço à mente para divagar. Por vezes também surgem ideias novas enquanto estou a tecer ou bordar. O vídeo é quase o oposto: requer foco mental absoluto e não dá essa margem de divagação. A diferença entre os dois processos é precisamente o que me atrai, porque cada um abre um tipo distinto de envolvimento com a narrativa. A nível de produto, vejo estes dois aspetos da minha prática como espelhos narrativos que se co-influenciam e completam.
CR: Poderás falar-me um pouco do aparecimento - como, quando, onde, porquê - do projecto editorial Pântano Books e do papel que tomas dentro dele? Crês que o trabalho enquanto editora se assemelha ao trabalho que realizas enquanto artista, ou a participação editorial acontece sobretudo enquanto facilitadora? Neste plano, a tradução de O Livro de Frank de CA Conrad aparece como uma vontade pontual, ou há o plano de ser continuada?
AR: A Pântano surgiu espontaneamente em conversa entre mim e a minha companheira, a Isadora Neves Marques. Ambas adoramos e escrevemos poesia e Isadora tinha um manuscrito preso nas mãos porque a editora que a ia publicar em Londres fechou durante a pandemia. Na altura pareceu-me razoável sugerir que publicássemos nós o manuscrito (Sex As Care and Other Viral Poems), e já que o íamos fazer, porque não começar um projeto editorial. Pareceu-nos interessante na altura publicar autores emergentes em Inglês, e traduções para Português Europeu de autores mais conceituados que nós admirássemos, e que sentíamos que mereciam tradução. A CAConrad foi o nome que surgiu imediatamente, e decidimos por começar pela tradução do seu primeiro livro publicado, O Livro de Frank.
Por várias razões, as vendas em Portugal da tradução não correram tão bem como as nossas edições em Inglês, e porque somos totalmente independentes e temos de considerar custos, pausamos as traduções para já. Eu vejo o meu envolvimento editorial na Pântano como absolutamente distinto do meu trabalho enquanto artista. É sobre os autores com os quais estamos a trabalhar, e esse lugar de retaguarda dá-me imenso prazer.
CR: Antes de mais, parabenizo-te pelo prémio que recebeste recentemente, o Prémio Novos Artistas da Fundação EDP, e aproveito-o para te perguntar - vendo-te enquanto artista jovem com um percurso já plenamente instituído internacionalmente - como vês as diferenças ou semelhanças entre a cena artística portuguesa e outras em que tenhas tido a chance de trabalhar, e se crês que a atribuição deste prémio, por si, terá repercussões no teu percurso - enquanto artista, por um lado, e enquanto artista profissional, por outro.
AR: Obrigada. Há diferenças entre a cena artística portuguesa e outras que tenho conhecido, mas é difícil generalizar. Cada contexto tem as suas especificidades, sempre condicionadas por fatores como a economia e a cultura local — e no caso de Portugal, sobretudo pela economia e um investimento estruturado precário na arte contemporânea. Ao mesmo tempo, o mundo da arte contemporânea é altamente globalizado, e nesse plano mais global, salvo projectos pontuais, sinto que Portugal ainda opera num universo próprio e muito auto referencial, com os seus ritmos e estruturas. Já no plano mais local, cada cena é particular e Portugal, como qualquer outro lugar, tem a sua especificidade.
Quanto a se a atribuição deste prémio terá repercussões no meu percurso, não faço ideia. De certo modo sinto que o prémio já é em si a repercussão, porque surge de um trabalho contínuo e de um percurso que tem vindo a consolidar-se.
CR: O corpo traduzido perde carne, fogo, sangue, muco?*
A conversa que aqui se apresenta aconteceu por email durante o mês de Setembro de 2025. Enquanto dirigia as perguntas a Alice, como mantra ou evocação surgiu esta pergunta. Talvez todas as outras perguntas se reportem a esta.
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Alice dos Reis (n. 1995, Lisboa) é artista visual e realizadora, cuja prática envolve cinema, têxteis, instalação e edição. Expôs, individual e coletivamente, no Museu de Serralves (Porto), Canal Projects (Nova Iorque), Palais de Tokyo (Paris), EYE Film Museum (Amesterdão), Kunsthalle Lissabon (Lisboa), entre outros. Os seus filmes foram apresentados em diversos festivais internacionais de cinema, como o BFI London Film Festival, Sheffield DocFest e DocLisboa. Recentemente, Alice foi bolseira das Bolsas de Artes Visuais da Fundação Botín (2022–2023) e, anteriormente, do Stipendium para Jovens Artistas do Mondriaan Fonds (2020–2021). Paralelamente ao seu trabalho, encontra-se a realizar o doutoramento na School of Creative Media da City University of Hong Kong. É também cofundadora da Pântano Books, uma editora independente de poesia.
Catarina Real (1992, Barcelos) trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica no campos expandidos da pintura, escrita e coreografia, maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração, que se debruçam sobre o questionamento de como podemos viver melhor colectivamente. É doutoranda do Centro de Estudos Hu-manísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em de-senvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. Mantém uma prática de comentário - nas vertentes de textos de reflexão, textos introdutórios a exposições, entrevistas e moderação de conversas - às obras e processos realizados pelos artistas na sua faixa geracional, com a intenção de contribuir para um ambiente salutar de crítica e criação colectiva e comunitária. Foi artista residente na Residency Unlimited, Nova Iorque, com apoio do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.



























